sexta-feira, 12 de março de 2021

Curioso dos 30

 Puxei o banco alto comido por cupim que temos que trocar, abri meu computador comprado por empréstimo fraterno e entrei nesta página em que, pelo menos agora com a fibra óptica de que dispomos, escrevo binariamente: A vaidade é uma forma de masoquismo.

Resolvi usar um anel com uma borboletinha prata de adorno marotamente furtado. Me vi obrigado a removê-lo para tomar banho quando, ao pensar que iria ter que inserir o dedo num objeto sem utilidade aparente de novo, percebi o labirinto em que havia entrado. Estou tomando banho com caneco e balde pois o abastecimento de água está suspenso após uma série de chuvas. Claro que esse não é o maior dos problemas após esse tipo de evento exclusivamente humano. Sim, tomei banho de balde porque a Água da distribuidora estava muito barrenta após muita água cair do céu. Demasiadamente humana, também, é a expiação diária por causar uma coisinha besta tipo o Aquecimento Global. Jogo mais um balde d'água sobre minha região pélvica. #pas

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Bananeira

 Bananeira


Ainda não se acostumara a passar os dias a sós depois de tantos anos cuidando de tantos filhos. Não que morasse sozinha. A maioria ainda vivia ali. Todos trabalhavam, finalmente. E o marido, aposentado como ela, visitava uma irmã naquela tarde. Decidiu chupar uma das laranjas da fruteira e foi ao quintal. Portava faca e laranja quando saiu sob o sol escaldante. Após quase cinco minutos a observar um par de folhas de bananeira, finalmente caiu em si e voltou a ser dona de seus pensamentos.

- Será que planta faz safadeza? Não, elas devem estar só dançando - deixou o raciocínio no ar por poucos instantes - e eu tô ficando doida. Planta dança, por acaso? - divertiu-se.

Já à noite, em sua cama com o esposo, a lembrança daquele par específico de folhas ainda morava em seus pensamentos. 

- Hômi.

- Hm.

- Cê acredita que eu tava chupando laranja hoje mais cedo no quintal e vi duas folhas da bananeira do vizinho tipo como se tivessem escutando música no vento e dançando?

Só duas? - O velho riu, erguendo uma sobrancelha - As outra tavam cansada?

- Bobo - riu - as outras também balançaram, mas tinha duas que balançavam junto.


***

No dia seguinte, após lavar a louça do almoço e guardar as panelas na geladeira pra janta, foi ao quintal cuidar da roseira, espiou a goiabeira e se questionou se estaria em vida quando finalmente brotasse jabuticaba naquele outro pé. Repentinamente recordou-se daquelas plantas estranhas e foi dar uma conferida do outro lado do espaçoso quintal.

"O mal elas não praticaram porque são só plantas", sussurrava consigo mesma enquanto encarava as folhas, agora quebradas. "Mas o bem também não dá pra fazer se você é só uma folha de bananeira", concluiu. 

As mesmas duas dançarinas do dia anterior mantiveram a dissidência do restante e eram as únicas quebradas entre todas as folhas dos dois pés de banana que cresciam no terreno do vizinho, rentes ao muro que fazia a divisão entre os quintais.


***

Como tinha muitos filhos, alguns dias eram dedicados a eles, presencialmente, como nos fins de semana, ou em pensamento, dado que era muito preocupada com o bem-estar de todos da família. Até mesmo esqueceu-se da dupla de folhas por alguns dias, com exceção de uma vez, que, enquanto cozinhava, questionou em pensamento se a ruptura causada pelo vento faria com que as folhas secassem e morressem. Como a posição da janela não permitia que enxergasse aquele ponto do muro do compadre, não conseguiu observar naquele instante e voltou sua concentração às cinco panelas que usava para cozinhar ao mesmo tempo com sua destreza.


***

Três dias sem pensar em bananeira alguma passaram, até que se lembrou da morte iminente das duas amigas e foi conferir, após escorar o corpo no caule do pé de cacau, as secas e penduradas folhas.

- Será que elas já morreram? Será que até isso elas fizeram juntas? - cogitou, chupando uma laranja.


***

Um dia, quando foi catar a roupa do varal, teve sua atenção atraída por aquela parte do muro.

- Seu Arnaldo, o senhor cuida que esse cacho ali tá despendendo pro meu quintal, hein - sorriu e o cumprimentou, deixando o protocolo pra depois da pilhéria. 

- Ô vizinha, se quiser pode cortar pra vocês que o cacho do outro pé já dá pra fazer bolo e até doce. Às vezes esse pé parece que queria mesmo era ter nascido do outro lado.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Emulsão

"O sabão lava meu pezinho, lava meu rostinho, lava a minha mão. Mas Jesus pra me deixar limpinho quer lavar meu coração". Isso tava num CD que eu ganhei. Os caras sabiam mesmo como cantar! Só que, pensando bem, não acredito que tomava banho de sabão à época. Sempre foi sabonete, não? Qual a diferença entre sabão e sabonete? "Sal do ácido gordo empregado" e "alcalina" não necessariamente acrescentam muito no momento. Mas se a "sujidade" for "emulsionada" em água tá ótimo. Ou a gente pode começar com um grave problema mental atrelado a alguns relacionamentos marginais e tóxicos, roubar gordura humana de alguma clínica e destruir o sistema crediário global, também. Ou, pelo menos, aprender com profissionais de verdade enquanto adaptamos uma história fictícia a outro meio de comunicação que impulsiona o aumento das possibilidades lucro-narrativas do produto em questão. Uma coisa é certa: saponificação não é mais uma palavra monossêmica, ainda bem. 

É imperativo que o ato de lavar as mãos tenha uma duração mínima para que deem-se os processos químicos necessários no combate à proliferação do Sars-CoV-2. Existe pelo menos um vídeo que demonstra isso de forma irrefutável. Na Banheiro do Gugu, ao contrário, existia um tempo máximo para conseguir agarrar o sabão. Ou sabonete. "Hoje eu ia entrar com o Neymar, eu ia entrar com o Cauã Reymond", disse Luiza Ambiel a Luciana Gimenez enquanto se submetia à avaliação de uma Máquina da Verdade pouco antes de resgatarem a imagem de Jô Soares na banheira com ela. "Quando o mal faz uma manchinha eu sei muito bem quem pode me limpar. É Jesus, pra me deixar limpinho, quer meu coração lavar".


sábado, 6 de janeiro de 2018

Trabalho Textual Ensaístico 1. Tema: Especismo

Há registros quase esquecidos de um ancestral comum a todas as espécies chamado ser humano. Todos habitavam um esferoide de nome Terra e as distinções entre os indivíduos da raça humana eram mínimas. Formados pela mesma quantidade de cromossomos, dividiam-se em nações e era a economia o pricipal meio de definição de status, direitos, possibilidades e deveres de cada um.
O advento do assim chamado “espírito científico” resultou em um crescimento vertiginoso da população daquela raça. Muita gente reunida em um pequeno lugar (estima-se que o planeta possuía cerca de 13 mil quilômetros de diâmetro) e munida de tecnologias então incipientes, como a internet e as aeronaves, resultou no início da exploração espacial.
A história se desenrolou de modo rápido. Grosso modo, notaram que as diferenças culturais e agendas políticas transcendiam fronteiras. Conflitos internos foram extintos junto com a já obsoleta ideia de nação e a adoção do conceito menos arcaico de esferas foi ponto pacífico. Cada indivíduo crescia em uma determinada esfera previamente escolhida pelos progenitores e ao chegar a vida adulta optava se queria mudar-se dali para um lugar onde as relações sociais se davam de um jeito que lhe agradasse mais do que aquela onde nascera aleatoriamente ou tornar-se um membro ativo de sua esfera.
Temos ainda hoje registros de um incrível amálgama de sociedades de práticas distintas, belas e bárbaras, todas praticadas naquele mesmo lar ancestral. A proliferação e o consequente acirramento entre esferas de ideais destoantes somados ao avanço irrefreável das tecnologias levou a um acordo comum que determinava a dispersão dos habitantes da Terra para um sem-número de sistemas estelares distintos. Cada esfera com seu esferóide, foi o lema à época.
Pouca coisa restou desse passado tão remoto, apesar das façanhas tecnológicas que sobrevivem ainda atualmente, mas há de se destacar a crença já difundida séculos antes de que o ponto de divergência era iminente e o pacto da boa vizinhança não mais se sustentaria. O  uso do prefixo “pós” em conceitos importantes àquela época, como em pós-verdade e pós-modernismo, para ficar com poucos exemplos, evidencia tal noção.

Hoje, algumas espécies tentam emplacar planos imperiais que chocam-se com o estabelecido Pacto Universal das Bolhas. A centelha entre espadas toma forma e o respeito entre as espécies quase não possui adeptos. Muitas das novas civilizações optaram pela negação das nossas semelhanças e passaram a alardear as diferenças. A tolerância foi esquecida com a história. Vivemos em tempos de ebulição. E é na fervura que as bolhas se chocam.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Lembranças Efêmeras de uma Mente Sem Brilho - IV

Ver da janela, no meio da madrugada, um horizonte impedido por prédios que despontam acima da roupa secando em um varal curto protegido por uma grade imunda de resíduos da indústria brasileira me deixa muito mais sossegado do que minha antiga vista. Antes, pequenas casas, caixas d'água e muita natureza me forçavam a lembrar da pecaminosa solidão que sentia, afinal, estava no seio de minha família, num ambiente tão aprazível quanto bravamente conquistado por gerações anteriores. Era errado. Criaram aquilo. Por eles e por mim. Até a ebriedade era desrespeitosa. Não mais. Agora a vida se desenrola num ambiente impessoal. A despeito dos significados atribuídos por mim a cada parte do novo lar, essa casa não me pertence e não me é de direito. O que resta sobra em suficiência. Mil lares, mil famílias, mil solidões compartilhadas numa simples olhadela. Mesmo tratando-se de uma visão romântico-niilista da contemporaneidade, essa é uma realidade que me satisfaz. Contemplar o horizonte (semi)natural gerava a sensação de estar nu contra a grandeza da Vida. Agora, a vida se esconde em segundo plano, atrás das rotinas, dentro da casa da qual me despeço toda vez que busco algum pertence. Pertencer à lógica onde sou apenas um e não mais "eu" me tranquiliza. Abro uma garrafa de cerveja ou fumo um cigarro ou checo as redes sociais no meu smartphone. Tanto faz. Não me sinto mais sozinho.

__________________

Menos céu implica menos metafísica.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Lembranças Efêmeras de uma Mente Sem Brilho - III

Vem, vida. Mas vem com raiva. Vem com sangue no olho. Você está atrasada. Eu já nasci. Já estou aqui. Gol fora de casa tem peso. Vem. Mas vem forte. O time é sem estrelas mas é unido. Joga fechado, trancado. Chutão ganha campeonato; golaço, nem sempre. O time é unido. Não tem craque mas tem raça. Você está irremediavelmente atrasada. Se vira. O seu banco é forte e não respeita o limite de substituições. O meu mal tem goleiro reserva. Eu sei. Eu não me importo. A bola rolando dá o tom. O resto é pose.

Você me queria vulnerável. Me queria fraco. Contra ataque fulminante. Foda-se. A gente joga na retranca. Queria raiva, queria ódio. Assim fica fácil. Desorganiza. Aqui não. O camisa 10 bate o pé e fica mesmo sem força pra chutar a maldita bola.n Ah, mas ele fica. O filha da puta teimoso não sai nem sangrando pelas unhas.

Resignação, vai ter. Como ganhar de um time recheado de estrelas? Bilhões na arquibancada vaiam. Torcem a favor das estrelas. Amor vende. É bonito. Golaço. A raça não. Ela gera cicatrizes, sangue. Talvez umas fotos bonitas. Mas não é o que se procura. A gente quer beleza. Dentro da subjetividade que todos temos ou daquela vendida nas capas do dia seguinte. A gente comemora gol de cagada, quando a bola bate e quica mas entra. Mas é meio triste ganhar assim. Mesmo que no último minuto com dois a menos. Sejamos sinceros. A bicicleta na pelada da quadra da pracinha do bairro é mais maneira que o gol de canela sem querer na final da Copa do Brasil. Só não é pra quem fez, pra quem torceu. Mas sua torcida é infinitamente maior do que a minha. Você tá aí desde que inventaram o futebol. Meu time foi criado esses dias. Nem tem tradição. Nem títulos. Porra nenhuma. Só uns apaixonados sem rumo que gostaram das cores, dos cânticos, sei lá. Mas vestiram a camisa. Você não, você tá em casa. Não é que queira o fracasso dos pequenos, é só o caminho natural das coisas. É natural os grandes vencerem. Natural.

Raiva a gente tem. Raiva você suga da gente. Mas a gente é bicho ruim. A gente é vida loka. A gente cresceu pocando o dedo em meio fio. Você vai ganhar. Vocês vão, é sabido. Vai rolar resignação, nós sabemos. Mas raiva não. A cabeça sai abaixada. Mas goleada não vai ter não. Cês vão ganhar de 1, 2, 2,5 a 0. Mas os três a zero vocês não conseguem. Porque a gente não torce. A gente joga junto. A gente não entra em campo. Entra em campo de batalha. A gente não joga. A gente vive.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Lembranças Efêmeras de Uma Mente Sem Brilho - II

(Gosto de piadas/trocadilhos/ambiguidades/referências/etc ad nauseam e acho o filme bem fantástico).


O medo de errar nunca me impediu de cometer milhões de erros. Dos catastróficos aos microscópicos. Algumas vezes parecia que simplesmente o mundo não fora feito pra me conter em seu conjunto de flutuações estatísticas do que constitui um ser humano. Noutras eu via com clareza (e uma dose particularmente pequena de egocentrismo, dessa vez) que eu é que estava com defeito de fábrica. Mesmo que eu quisesse analisar friamente todos os dados e possibilidades e tentasse ser mestre (que é mais irado que "doutor") da minha própria vida, os dias, sem a menor noção de sensibilidade, continuavam inexoravelmente trazendo novos erros. Mudei de plano. Talvez, ação por ação, escolha por escolha, analisando ~simplesmente~ suas consequências, eu poderia moldar meu futuro. As variáveis eram tantas que meu processador-entre-orelhas deu "telas blues", a tal da tristeza. Metodologia é uma instituição mutável por filosofia. Parti então para a ideia da confrontação apenas das escolhas. Era só avaliar a tabela semi-imutável da minha ética e achar o resultado da função. Errado de novo. Conflitos ético-morais desafiavam a sintaxe da linguagem de programação que construí ao longo da jornada. Sem contar que a impossibilidade bioquímica e física e qualquer junção de uma ciência + sufixo "ica" (se já não estiver presente no próprio nome da ciência escolhida) do livre-arbítrio também afetou profundamente meu id. Ou ego. Ou superego. Não sei. Poderia dizer mais uma vez que sou um cara de Exatas e nada a ver ter feito Humanas porque isso me deixou meio estranho e perdido. Mas talvez a tal da Humanas me deixou mais humano. Portanto, irremediavelmente perdido. Porém, satisfeito em andar devagar e seguir em frente.


------

A poesia é uma mentira deslavada. Ou uma verdade escondida. O romance é estelionato puro e simples, mesmo quando transformador. Só a autobiografia é uma mentira sincera.