quarta-feira, 3 de maio de 2017

Lembranças Efêmeras de uma Mente Sem Brilho - IV

Ver da janela, no meio da madrugada, um horizonte impedido por prédios que despontam acima da roupa secando em um varal curto protegido por uma grade imunda de resíduos da indústria brasileira me deixa muito mais sossegado do que minha antiga vista. Antes, pequenas casas, caixas d'água e muita natureza me forçavam a lembrar da pecaminosa solidão que sentia, afinal, estava no seio de minha família, num ambiente tão aprazível quanto bravamente conquistado por gerações anteriores. Era errado. Criaram aquilo. Por eles e por mim. Até a ebriedade era desrespeitosa. Não mais. Agora a vida se desenrola num ambiente impessoal. A despeito dos significados atribuídos por mim a cada parte do novo lar, essa casa não me pertence e não me é de direito. O que resta sobra em suficiência. Mil lares, mil famílias, mil solidões compartilhadas numa simples olhadela. Mesmo tratando-se de uma visão romântico-niilista da contemporaneidade, essa é uma realidade que me satisfaz. Contemplar o horizonte (semi)natural gerava a sensação de estar nu contra a grandeza da Vida. Agora, a vida se esconde em segundo plano, atrás das rotinas, dentro da casa da qual me despeço toda vez que busco algum pertence. Pertencer à lógica onde sou apenas um e não mais "eu" me tranquiliza. Abro uma garrafa de cerveja ou fumo um cigarro ou checo as redes sociais no meu smartphone. Tanto faz. Não me sinto mais sozinho.

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Menos céu implica menos metafísica.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Lembranças Efêmeras de uma Mente Sem Brilho - III

Vem, vida. Mas vem com raiva. Vem com sangue no olho. Você está atrasada. Eu já nasci. Já estou aqui. Gol fora de casa tem peso. Vem. Mas vem forte. O time é sem estrelas mas é unido. Joga fechado, trancado. Chutão ganha campeonato; golaço, nem sempre. O time é unido. Não tem craque mas tem raça. Você está irremediavelmente atrasada. Se vira. O seu banco é forte e não respeita o limite de substituições. O meu mal tem goleiro reserva. Eu sei. Eu não me importo. A bola rolando dá o tom. O resto é pose.

Você me queria vulnerável. Me queria fraco. Contra ataque fulminante. Foda-se. A gente joga na retranca. Queria raiva, queria ódio. Assim fica fácil. Desorganiza. Aqui não. O camisa 10 bate o pé e fica mesmo sem força pra chutar a maldita bola.n Ah, mas ele fica. O filha da puta teimoso não sai nem sangrando pelas unhas.

Resignação, vai ter. Como ganhar de um time recheado de estrelas? Bilhões na arquibancada vaiam. Torcem a favor das estrelas. Amor vende. É bonito. Golaço. A raça não. Ela gera cicatrizes, sangue. Talvez umas fotos bonitas. Mas não é o que se procura. A gente quer beleza. Dentro da subjetividade que todos temos ou daquela vendida nas capas do dia seguinte. A gente comemora gol de cagada, quando a bola bate e quica mas entra. Mas é meio triste ganhar assim. Mesmo que no último minuto com dois a menos. Sejamos sinceros. A bicicleta na pelada da quadra da pracinha do bairro é mais maneira que o gol de canela sem querer na final da Copa do Brasil. Só não é pra quem fez, pra quem torceu. Mas sua torcida é infinitamente maior do que a minha. Você tá aí desde que inventaram o futebol. Meu time foi criado esses dias. Nem tem tradição. Nem títulos. Porra nenhuma. Só uns apaixonados sem rumo que gostaram das cores, dos cânticos, sei lá. Mas vestiram a camisa. Você não, você tá em casa. Não é que queira o fracasso dos pequenos, é só o caminho natural das coisas. É natural os grandes vencerem. Natural.

Raiva a gente tem. Raiva você suga da gente. Mas a gente é bicho ruim. A gente é vida loka. A gente cresceu pocando o dedo em meio fio. Você vai ganhar. Vocês vão, é sabido. Vai rolar resignação, nós sabemos. Mas raiva não. A cabeça sai abaixada. Mas goleada não vai ter não. Cês vão ganhar de 1, 2, 2,5 a 0. Mas os três a zero vocês não conseguem. Porque a gente não torce. A gente joga junto. A gente não entra em campo. Entra em campo de batalha. A gente não joga. A gente vive.