quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Centro. Começo do ano de 2013.


O expediente havia chegado ao fim e eu estava livre para voltar para o meu aconchego. Bastava pegar um ônibus que me levasse ao Terminal de Jardim América e, no terminal, um outro, da linha 741, levaria-me para o glorioso bairro de Bandeirantes; para minha casa. 

Ocorre que o Centro de Vitória possui uma ampla variedade de lojas e instituições públicas que empregam alguns milhares de capixabas, dos quais boa parte reside no inestimável município de Cariacica, onde ficam os bairros de Jardim América (pesquise os nomes das ruas deste bairro e entenderás) e Bandeirantes, e como a ampla maioria destes trabalhadores termina sua jornada laboral às 18h, os pontos de ônibus ficam parecendo formigueiros.

Pensando no sofrimento que seria enfrentar o transporte público no horário de pico, resolvi dar um pulo na rua Sete de Setembro, historicamente um dos maiores pontos culturais da ilha.

Portando o livro “Demian”, minha segunda leitura do Nobel de Literatura Hermann Hesse, em mãos, decidi parar num bar da histórica rua – que havia sido revitalizada há menos de um ano – para fazer algumas das coisas mais legais da vida de um ser humano ao mesmo tempo: beber cerveja, ouvir música e ler um grande livro.

Apesar de não ter mergulhado tão profundamente na obra (diferente do meu quase afogamento durante a leitura de “O Lobo da Estepe”[1]), eu estava fascinado com a vida de Sinclair, personagem central do livro. Após algumas páginas viradas e alguns goles de cerveja entornados goela abaixo, minha concentração começou a se esconder entre as linhas do texto. Na verdade, foi o som da conversa de um cara sentado a minha direita que dissipou minha concentração.


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– Esse cara aqui engraxa meu sapato há mais de dez anos, acredita? – Demorei uma fração de segundo a mais do que o normal para aceitar que o senhor bigodudo sentado de frente pra mim, escorado na parede do bar, vestido com um uniforme em tons de azul e fumando um cigarro estava realmente falando comigo. “Puta merda, que falta de educação”, pensei, enquanto olhava de canto de olho para meu indesejado interlocutor.

Estávamos do lado de fora do bar, cada um sentado a uma daquelas mesinhas de plástico com propagandas de cerveja e, poxa vida, eu estava lendo um livro e com fones no ouvido, só faltava uma plaquinha de “não perturbe” para ganhar o certificado internacional de “me deixa em paz, sou antissocial”. No entanto, o senhor moreno-queimado-de-sol continuou ignorando completamente a minha própria tentativa de ignorá-lo:

– Confio muito nesse rapaz aqui. Ele é quase da família, não é não, [algum nome que não entendi bem]? – O jovem que permanecia agachado de costas para mim soltou um “hm-hum” e continuou seu ofício.

Curioso, tirei os fones, me virei para o senhor e o encarei, me rendendo ao seu monólogo disfarçado de diálogo.

– Eu tenho uma empresa, sabia? – Disse ele, com um tom de voz de quem acreditava geuinamente que o assunto era de alguma forma importante para mim. Acenei positivamente com a cabeça enquanto ele falava – É. E meus filhos fazem faculdade. Não sei se eles vão manter meu negócio, mas pelo menos eles estão na faculdade. – Ele alternava tragadas e goladas com frases, até que foi interrompido pelo engraxate. Aparentemente o serviço estava pronto.

“Toma. Não, não tenho trocado. Não, o que é isso? Pode ir lá trocar o dinheiro. Eu confio em você, rapaz. Você sabe muito bem disso. Pode ir. Tantos anos engraxando meus sapatos e eu não confiaria em você? Vai, pode trocar o dinheiro”. O engraxate apenas gesticulava, sem dizer nenhuma palavra em resposta. Achei que neste momento eu já estava liberado da conversa obrigatória e voltei a ouvir música e ler meu livro; vi quando o jovem se dirigiu a um outro estabelecimento tentando trocar o dinheiro do bigodudo empresário.

– Tá vendo só? – Voltou a dirigir-se a mim o dono dos sapatos mais brilhantes entre todos os clientes do bar – Confio nesse rapaz, cara. São muitos anos de confiança. Dei cinquenta reais na mão dele sem nem esquentar a cabeça. Tenho certeza absoluta que ele vai trazer meu troco certinho. E se não trouxer, também, não tem problema. Eu tenho uma empresa.


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Resolvi desistir de ler ali e terminar de beber minha garrafa de cerveja enquanto observava um pouco mais da rotina boêmia da belíssima rua. Notei que éramos poucos clientes naquele início de noite, mas o fluxo de pessoas na rua era grande. Pessoas apressadas. Engravatadas. Hippies. Moradores de rua...

… Foi nesse momento que finalmente dediquei um pouco da minha tão solicitada atenção às duas mulheres que bebiam na mesa disposta ao lado do falastrão, também encostada à parede, a “uma hora” (mais ou menos entre o norte-nordeste e o próprio nordeste) de mim. Elas se comunicavam com muitas gesticulações e riam a todo o momento. Se não me falha a memória, uma delas fumava, ambas usavam batom num tom de vermelho muito parecido – ou mesmo igual – e usavam pelo menos uma peça de jeans.

Não sei se sou um cara muito ingênuo ou pouco atencioso, mas demorou um bocado de tempo para eu entender que ambas eram prostitutas. Gosto de entender o ambiente em que me situo e não pude esconder um pequeno riso de satisfação ao entender melhor o que se passava ao meu redor. Apesar de haver um pouco de malícia impregnada no ar, característica de toda essa situação, ainda estávamos no horário de verão, portanto só começaria a escurecer mais tarde, e, por enquanto, a luminosidade daquele dia frio e nublado dava um toque de leveza à toda a situação.

O engraxate voltou o com o troco do seu suposto amigo e partiu, não sem antes ter que recusar dezenas de vezes o convite de se juntar à bebedeira do homem que contratara seu serviço.

Pedi outra garrafa de cerveja enquanto tentava ler de longe as capas de revistas de uma banca de jornais próxima ao bar – o que foi particularmente difícil, dado o meu grau de miopia.


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“A snowstorm blew inside a wolf's eyes/ and the frozen tears covered all the mountainsides/ But then the time got by and the wolf died/ and someday that wolf would be I”.[2]

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O trecho acima é uma das estrofes da música “Death and the Healing”, da banda finlandesa Wintersun. Essa canção tocava em loop no player do meu celular naquele dia.

Eu estava completamente imerso no universo da música quando notei um princípio de confusão na mesa daquele cara a minha direita. Um morador de rua sentou-se a sua mesa e estava bebendo com ele quando o dono do bar chegou e pediu para que o maltrapilho saísse das imediações de seu estabelecimento. Houve um princípio de discussão e o dono do bar espantou o morador de rua, ameaçando-o com uma vassoura. Espantar. O verbo mais indicado para a situação, ao meu ver.

O bigodudo, já embriagado, tentou argumentar com o homem de vassoura na mão que não havia problemas no fato de o indigente ficar ali, fazendo companhia para si. Mas o dono do bar foi irredutível: o expulsou e o expulsaria de novo. Afinal, ele era um drogado que vivia causando confusão nos estabelecimentos da região, segundo seu relato.

Desconfortável com a situação e impotente, levantei-me, bebi o resto da minha cerveja de uma só golada, paguei minha conta e me retirei do local. Fui-me embora de um dos principais pontos de encontro dos amantes do samba no Espírito Santo...

“Ouça-me bem, amor/ Preste atenção, o mundo é um moinho/ Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho/ Vai reduzir as ilusões a pó”.[3]

...Ouvindo uma música da Finlândia, com solos de guitarras distorcidas.

“Time is the death and the healing/ Take your last breath, 'cause death is deceiving/ Time is the past, now and tomorrow/ Days fly so fast and it leaves me so hollow”.[4]

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1 - "[...]'A maioria dos homens não quer nadar antes que o possa fazer.' Não é engraçado? Naturalmente, não querem nadar. Nasceram para andar na terra e não para a água. E, naturalmente, não querem pensar: foram criados para viver e não para pensar! Isto mesmo! E quem pensa, quem faz do pensamento sua principal atividade, pode chegar muito longe com isso, mas, sem dúvida estará confundindo a terra com a água e um dia morrerá afogado" – “O Lobo da Estepe”, Hermann Hesse

2 - Algo como: Uma nevasca soprou dentro do olho de um lobo/ e suas lágrimas congeladas cobriram as montanhas/ Mas então o tempo passou e o lobo morreu/ E um dia esse lobo será eu”.

3 - Cartola, “O Mundo é Um Moinho”.

4 - Algo como: “O tempo é a morte e a cura/ Dê seu ultimo suspiro, pois a morte nos ilude/ O Tempo é o passado, o agora e o amanhã/ Os dias voam rápido demais deixando-me um vazio”.

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