quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Relacionando Crises Conjugais com o Capital


Querida amada,

Sei que temos passado por muitos problemas ultimamente. Nossas constantes brigas giram em torno dos mesmos motivos, e nunca conseguimos chegar a um consenso. Sempre acabamos culpando um ao outro, esquecendo, muitas vezes, a razão da discussão. Acredito que recentemente, tive o prazer – ou desprazer, se quiser interpretar dessa forma – de me deparar com um conceito que me fez compreender melhor o motivo de nossa atual crise conjugal. O culpado não sou eu, tampouco você. A culpa é do Capital.
Quase consigo enxergar a expressão de confusão e indignação em seu rosto agora. Estou ciente de que para você e para a grande maioria da população, o Capital é meramente uma quantia em dinheiro investida em determinado negócio para se gerar mais dinheiro. Não tenho a intenção de menosprezá-la, minha querida, mas isso não passa de senso comum. Dinheiro investido é apenas uma das inúmeras definições que cabem ao Capital, e isso não chega nem perto de expressar devidamente o quanto este controla as nossas vidas.
Primeiramente, você deve entender que o Capital está em praticamente todo lugar. O seu consultório, o meu escritório, o carro da empresa que eu dirijo todos os dias, qualquer edifício comercial e até a barraca de camelô no centro da cidade, no momento de sua criação, são apropriados pelo Capital. Ele faz com que absolutamente tudo trabalhe e funcione em seu benefício. Quando você exerce a sua função de dentista e cobra determinada quantia para fazê-lo, o dinheiro não pertence a você. Discorda, amor? Então por que não analisamos como você gasta o seu merecido dinheirinho?
Você paga o aluguel, condomínio, e investe em seu apartamento, quando necessário – reformas e adjacentes -; compra roupas e sapatos quando os antigos não estão mais próprios para uso; compra, obviamente, comida, para ter direito às abençoadas três refeições diárias; compra bens de consumo que lhe satisfaçam enquanto ser dotado de personalidade própria, pois pode se dar a esse luxo, que podem consistir em novas tecnologias, objetos de decoração e outros; troca de carro quando julgar necessário; faz seu check-up no médico e gasta com o que for necessário para cuidar de seu bem-estar; paga a escola do seu filho, para garantir o futuro de sua progênie; e, finalmente, gasta saindo à noite, indo ao cinema, viajando para Fernando de Noronha... Afinal, uma mulher trabalhadora como você necessita de um tempo para se divertir, certo?
O que você, minha querida, e a maioria das pessoas não enxerga – e eu, há até pouco tempo atrás – é o real objetivo por trás destes gastos. Se pararmos para analisar, tudo não passa de um ciclo vicioso. Em favor de você, que gasta seu salário digna e responsavelmente? Não, em favor do Capital. O que nós fazemos, na realidade, é simplesmente garantir para nós mesmos moradia, vestuário, transporte, saúde, lazer, e educação para nossos filhos, os elementos necessários para que renovemos nossa bendita Força de Trabalho. É a força de trabalho que executamos a responsável por encher nossos bolsos todo mês. E, como não somos robôs incansáveis, essa força necessita de uma renovação diária que exige certas demandas... E o que seriam? Moradia, vestuário, transporte, saúde, lazer e educação para as crianças, para que elas possam estar aptas a repetir o mesmo ciclo futuramente. Aliás, a educação serve apenas para uma coisa: aumentar o valor da força de trabalho de um indivíduo. Não é plausível que um sujeito que tenha nível superior mereça ganhar mais que um que largou a escola no nível fundamental? Afinal, ele teve mais educação. Amor, garantir isso para seus filhos não é, na prática, uma maneira de torná-los mais sábios, mais inteligentes. É um investimento que ajuda na alimentação do Capital.
Está entendendo a idéia, amor? Você trabalha e ganha esse dinheiro para gastar de maneira a estar apta para repetir o processo novamente. Dia após dia, pelo resto da sua vida. Chocada? Deveria estar.
A verdade é que o Capital fugiu ao nosso controle. Surgiu como uma possibilidade de se adquirir riquezas e liberdade individualmente. Hoje, é a razão de todos os problemas atuais na sociedade: pessoas morrendo de fome pelas ruas, as colossais desigualdades sociais que vemos cotidianamente, e o quão rasa é a mentalidade do cidadão médio. Trabalhamos para manter o Capital firme e forte através dos tempos, raramente temos consciência disso, estamos satisfeitos assim, e parece não haver nenhuma interpretação otimista quanto a essa situação. Estamos sujeitos a uma alienação extrema, e em muitos momentos não parece haver uma saída. Afinal de contas; eu no meu escritório, as milhares de pessoas que trabalham no edifício comercial e o humilde vendedor de quinquilharias de camelô estamos presos ao mesmo processo de gastos monetários que você, meu amor. Agora reproduza tudo isso em escalas globais, de milhões de pessoas. Deprimida? Deveria estar.
Meu objetivo, com tudo isso, é fazê-la entender algo simples: absolutamente nada nessa vida dura eternamente, tudo é efêmero. A partir do momento em que se toma consciência desse ciclo, dessa “maldição” do Capital, se me permite dizer desta maneira, fica muito difícil encontrar algo que faça sentido e nos satisfaça pessoalmente enquanto seres humanos. Só posso esperar que enxergue que diante tudo isso, o que podemos fazer é estarmos felizes e sermos agradecidos por termos um ao outro. Mesmo juntos, talvez nunca possamos nos livrar das garras do Capital, mas podemos, sim, apreciar cada momento que passarmos um com o outro enquanto existirmos na face da Terra. Quero acreditar que esses momentos terão tal significado que para pelo menos para nós, serão, sim, eternos. E principalmente, quero muito acreditar que nosso amor não é simplesmente mais um empregado do Capital.

Com muito amor e sinceridade, de seu para sempre companheiro,

Fulano da Silva

2 comentários:

  1. Cara eu não me considero portador de elogios tamanhos que expressem minha satisfação em ler o seu texto de ideias tão complexas. Portanto, acabei.

    ResponderExcluir